Basta uma volta pela cidade. Na academia, na igreja ou no Maleta. Depois de comentar sobre o tempo, sobre a amiga ausente que mudou de namorado (de novo) e antes de começar a falar sobre morte, a gente vê que está todo mundo com a impressão de crise, de que perdemos valores e princípios.
Se uma das companhias do bar já chegou aos “enta”, aumenta o risco da “overdose” de nostalgia. A frase clichê é: “no meu tempo não era assim. Antes os filhos respeitavam os pais, as pessoas se amavam, não havia tanta falsidade, violência”. Bom...Essa constatação tem um “quê" de verdade. Mas não, não no lugar comum. Desde que o mundo é mundo há sempre a sensação de que quem está chegando aqui agora está deixando tudo bagunçado. O que esse “clichê geracional”, todavia, esconde é que conforme o tempo passa a gente tende a se angustiar com nossa incapacidade de dar respostas novas a problemas que sempre existiram.
Não se esqueça de que a geração das nossas avós conheceu guerras, ditaduras, Hitler, Auschwitz... O que é o Twitter (ou seria X?) perto disso? Será realmente que foram as Redes Sociais que nos tornaram mais violentos, dividiram as famílias, ou elas só expuseram a fragilidade de nossas “utopias”?
Mudança de época. Época de mudanças. Crise da democracia. Morte de Deus. Teologia do empreendedorismo. Desconfiança do “felizes para sempre”... Tensão à flor da pele. Incerteza na tela, ao alcance das mãos. Como ser sem se desfazer?
Para pensares como Kierkegard e Heidegger, a angústia é o que institui o sujeito. Para aquele, no momento que a gente faz o recuo para uma visão crítica das nossas “convicções” é que estamos face à face com quem somos de verdade. Para esse, viver significa angustiar-se. É precisamente quando a gente se percebe lançado, subtraído de nossas seguranças, que alcançamos um existir mais autêntico.
Trocando em miúdos: obstáculo é oportunidade, crise é crivo, faça dos limões uma limonada. Escuta Belchior: “tenho sangrado demais. Tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri. Mas esse ano eu não morro”. Escuta sertanejo, filosofia da sofrência, que ajuda a ressignificar decepções: “um homem sem chifre é um animal indefeso” (hahahaa).
Pode ser que a sensação de que está tudo “pior”, essa síndrome de Maysa, de que “meu mundo caiu”, seja o início de uma vida mais autoral e autônoma. Dançe na beira do abismo!
Bendita seja a crise. Bendita seja a crise das utopias! A própria etimologia dessa palavra “utopia” ajuda a perceber o motivo pelo qual a gente fica ansioso e deprimido num luto contínuo de nossas expectativas. Utopia é um conceito de origem grega que quer dizer “não-lugar”.
Deus está morto. Nietzsche está morto. Nossas referências estão mortas. E nós não estamos passando muito bem...
Na verdade, o Deus de Israel, só é vivo quando a imagem que fazemos dele se “desfaz”. Ele convoca Abraão e Jó a comparecem diante da crise. Aquele teve que aprender que YHWH (Adonai) é algo mais do que um “banco de sêmen” (Gn 22), um cumpridor de caprichos, mas o Deus da Promessa. Esse percebeu que, às vezes, mesmo fazendo tudo certinho, a gente se ferra. Há momentos que nem nossa família, nem nossos amigos, nem padre ou pastor dão conta de elaborar as repostas que devem vir de dentro, da experiência com um Deus que “morre” quando está preso a imagens, a templos e a fórmulas, mas que vive e se dá a conhecer na intimidade, na experiência (Jo 42,5) ...
A substância da moral pública é a hipocrisia. Talvez um pouco de turbulência faça bem para os gabinetes de esquerda, para as igrejas, para os tribunais, para família... Toda criação, lembra o apóstolo, “geme como em dores de parto” (Rm 8,22). Partejemos! Como lembra William Blake: o prazer até engravida, mas é a dor que faz parir...