Uma das coisas mais belas da Bíblia é a sua sinceridade sobre as contradições humanas. Sim, a Bíblia é uma Revelação Divina. Nela, Deus comunica Quem Ele é e tudo aquilo que é útil para a Salvação dos homens. Todavia, Ele O faz em “linguagem humana”, envolvido em histórias humanas. Assim, se por um lado as Escrituras contêm uma Mensagem de Salvação, que é permanente, por outro, nelas, vemos o homem em “vias de amadurecimento”. Na Bíblia, há, portanto, espaço para elementos imperfeitos e transitórios. Nela, a vida humana é apresentada em suas tensões e em sua ambiguidade...
Uma das grandes tensões e ambiguidades da nossa existência é a angústia. Tanto que Lacan diz que ela é o único sentimento, em nós, que não mente. A felicidade? mente...A paixão? meeente... Agora a Angústia: ela, de modo invertido, sempre traz verdades que precisam ser digeridas.
Diria que, nas Escrituras, a maior concretização da Angústia, esse afeto tão humano, está no Eclesiastes. O livro é atribuído a Salomão, o rei mais esplendoroso de Israel e que, apesar de ter tido “tudo”, sabedoria, riqueza, amores, se vê diante da “angústia do existir”. Salomão suspira que a vida é uma causa perdida. “Vaidade das Vaidades, tudo é vaidade” Ecl 1,1.
O que está no hebraico é “hébel”. Significa sopro, vazio, oco, nada. Assim, Salomão está diante de um sentimento que, cedo ou tarde, vem a todos nós: de que tudo pelo que lutamos não faz sentido. Uma perda, uma decepção, uma traição pode catalisar esse afeto na gente.
Podemos dizer: “Tudo que eu quero, não o quero quando alcanço, nunca quis o que realmente quisesse”. O desejo humano é insustentável. Realizando-se, ou não, atravessa nossas expectativas. Aquilo, ou quem nós amamos, "é", “não sendo”. No instante que pensamos nos pertencer, "é um sopro”...
Que diremos? Faremos do drama o desespero? Pois para o Eclesiastes, parece que não..."Se na vida não há nada de novo debaixo do Sol” Ecl 1,9, se ela é, como dizia Nietzsche, “um eterno retorno do mesmo”, é preciso apreciar o instante. Goza da vida em companhia de quem amas, no tempo fugaz de teus trabalhos debaixo do sol, lembra o Eclesiastes (9,9). Como diziam os medievais: Carpe Diem (colhe, aproveita o dia).
Sabe...nessa consciência do agora, do instante, de que a vida só dá uma safra, ficava observando o quanto os ipês, que nesses dias começaram a florir, são inúteis. Sua floração é um espetáculo soberbo. Uma árvore insubordinada, que se enche de flores uma vez no ano, e nem se quer dura uma semana. Floresce sozinha, nem sequer é primavera. Coisa mais fora de contexto!
Ipês são inúteis, só falam a quem está aéreo, só são vistos por almas românticas. Ipês são inúteis para quem está atrasado para o trabalho. Sua beleza do instante, fugaz, só encanta apaixonados e distraídos...
Ipês são o paradoxo da felicidade...Não se é feliz quando se vive sem a colheita do instante, em adultério do amor próprio. Ao fim e ao cabo, o que a vida quer de nós é ousadia. A aprovação do outros é sempre um acordo cínico. No mundo real, ninguém dá conta de ser bom e útil o tempo todo. Por isso precisamos nos cercar de pessoas que nos apreciem como a ipês, que nos percebem, simplesmente; pessoas que suportem e apreciem as nossas “inutilidades”.
A beleza da vida reside em “tornar-se o que é”, pois aquilo que realmente somos é uma verdade, bondade e beleza, sem contexto, sem pretextos...
“Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina”. Rubem Alves.