Música e futebol, no Brasil, têm vocabulário próprio. Não por acaso, algumas expressões podem ser usadas para se referir tanto a uma quanto ao outro. Por exemplo: ginga, suingue, ritmo, harmonia, direção. Outras ainda mais inusitadas provam o poder de criação e improviso nos dois campos. Só no Brasil cabe, dentro de uma partida de futebol, a pelada, o drible da vaca, a bicicleta, a folha seca e alguns cachorros que vez em quando invadem o gramado. É que o brasileiro joga como se fosse música, e toca como se fosse futebol. Chegou a hora de embalar o Brasil rumo ao hexa na Copa do Catar...!
“Um a Zero” (choro, 1946) – Pixinguinha, Benedito Lacerda e Nelson Angelo
Gravado pela primeira vez em 1946, o choro “Um a zero” de Benedito Lacerda e Pixinguinha, foi composto em 1919, com o intuito de celebrar a conquista da Seleção Brasileira sobre o Uruguai no campeonato sul-americano de futebol. Quatro anos depois viria o primeiro capítulo marcante da história brasileira em Copas do Mundo e a vingança dos uruguaios, ao conquistarem o Bicampeonato Mundial sobre os brasileiros no Maracanã lotado, e de virada.
Mas o que ficaria para a música, além da primorosa execução instrumental de Pixinguinha e da letra colocada por Nelson Angelo, violonista do Clube da Esquina, e registrada por diversos intérpretes, sendo a mais famosa delas feita pelo grupo “Arranco de Varsóvia”, seria o poder de encantamento destes sons e da poesia. Um gol de placa de Pixinguinha. “Vai começar o futebol, pois é/ Com muita garra e emoção…”.
“País Tropical” (samba-rock, 1969) – Jorge Ben Jor
“País Tropical” fez um sucesso tão grande que se tornou prefixo musical do Brasil no mundo. Exaltando as belezas de sua terra, ao modo de Ary Barroso, Jorge Ben fez uso de sua vasta gama de influências para criar essa pérola do cancioneiro brasileiro. A ideia de não pronunciar a segunda parte das palavras no decorrer da música marcou mais uma vez a criatividade do artista. Wilson Simonal foi um dos que a regravou com grande êxito comercial. Mas a interpretação de Jorge Benjor carrega toda a entrega do compositor da canção.
“Pra Frente Brasil” (hino, 1970) – Miguel Gustavo
“Pra Frente Brasil” foi composta por Miguel Gustavo em 1970 para embalar a Seleção Brasileira na Copa do Mundo do México e deu certo, já que a Seleção Canarinho voltou com o tricampeonato e um show de Pelé, Tostão, Jairzinho, Rivellino, Gérson, Carlos Alberto Torres e tantos outros craques. Na ocasião, Miguel Gustavo venceu a disputa pela escolha da música para representar o Brasil no México, desbancando nomes como Chico Buarque, Edu Lobo e Carlos Imperial. Mas a música também serve para embalar a nossa torcida pelo Brasil na Copa, basta adaptar os “90 milhões em ação” para “200 milhões em ação”. Lançada pelo Coral de Joab, ela foi regravada por Zeca Pagodinho...
“Aqui É O País do Futebol” (samba, 1970) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Convidados pelos diretores Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite para compor a trilha sonora do filme “Tostão, a Fera de Ouro”, Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram canções que ultrapassaram aquele período.
“Aqui É O País do Futebol”, samba moderníssimo em sua estrutura e com letra que exalta o poder de atenção do esporte sobre os brasileiros, embalou não só a Seleção Brasileira em 1970, quando conquistou o Tricampeonato Mundial no México com uma equipe considerada das melhores de todos os tempos, como seguiu emocionando e contagiando plateias mesmo após o encerramento da competição.
Além do registro de Milton Nascimento no disco “Milton” a música também foi gravada por Elis Regina, no álbum ao vivo “Trem Azul”, e por Wilson Simonal, um dos embaixadores daquela seleção, amigo íntimo de Pelé e de outras estrelas do escrete canarinho. Por tudo isso, a música segue atual.
“Meio-de-campo” (MPB, 1973) – Gilberto Gil
Gilberto Gil homenageia o jogador Afonsinho, habilidoso meia do Fluminense que tinha uma postura combativa contra a ditadura militar, na música “Meio-de-campo”, de 1973. Voltando do exílio em Londres imposto pelos militares, Gil mistura, com a habitual inteligência, versos que fazem referência tanto ao esporte, quanto ao conturbado momento político da época, além de tecer reflexões existenciais. Lançada com sucesso por Elis Regina no álbum “Elis”, a música faz referência a outros ídolos dos gramados, como o Rei Pelé, atacante santista; e Tostão, do Cruzeiro; dois importantes nomes na conquista, pela Seleção Brasileira, do Tricampeonato Mundial no México em 1970. Sucesso...!
“Camisa 10” (samba, 1974) – Hélio Matheus e Luís Vagner
Zagallo esteve presente em quatro conquistas de Copa do Mundo defendendo o Brasil, duas como jogador, em 1958 e 1962, uma como treinador, em 1970, e outra como coordenador técnico, em 1994, além de um vice-campeonato em 1998, comandando a Seleção Brasileira contra a anfitriã França.
Apesar disso, o cantor Luiz Américo bem que pede desculpas, mas não perdoa o “Velho Lobo” quando da composição do samba “Camisa 10”, sucesso imediato em 1974 justamente por ir ao encontro dos anseios do povo que fazia as mesmas reclamações.
A letra, de autoria de Hélio Matheus e Luís Vagner, brinca de forma espirituosa e bem humorada com situações vividas pelo escrete carinho e lança mão de referências implícitas a jogadores do time, como o goleiro Emerson Leão. O fracasso da equipe naquele mundial disputado na Alemanha corroborou para o sucesso da canção, eternizada no repertório de Luiz Américo.
“Replay [O meu time é a alegria da cidade]” (samba-rock, 1974) – João Lemos e Roberto Corrêa
O Trio Esperança foi um conjunto vocal formado no Rio de Janeiro por uma família. Composto pelos irmãos Mário, Regina e Evinha despontou para o sucesso no programa de calouros de Hélio Ricardo em 1961, e seguiu a toada com apresentações no programa “Jovem Guarda”. Com a saída de Evinha para carreira-solo em 1968, o grupo recebeu outra irmã, Marisa, e continua ativo com apresentações principalmente na Europa, onde residem.
Mas foi no ano de 1974 que talvez o Trio tenha lançado o seu maior sucesso, e justamente com uma canção tematizando o futebol. “Replay”, que ficou mais conhecida por um dos versos que se tornou epígrafe, “O meu time é a alegria da cidade”, imita uma narração de jogo em tempo real, vocalizada pelos integrantes, e que culmina com o momento máximo deste esporte tão apaixonante. “É Goool! Que felicidade…!”.
“Geraldinos e Arquibaldos” (samba, 1975) – Gonzaguinha
No ano de 1975, Gonzaguinha se esquiva das garras da censura imposta no Brasil em razão da ditadura militar, com um samba irônico e divertido, cuja sinuosidade da letra é acompanhada de perto pelo ritmo. “Geraldinos e Arquibaldos” traz ainda uma homenagem às pessoas humildes que frequentam os estádios nos lugares mais simples, a “geral” e a arquibancada, além de lançar mão de expressões típicas do esporte mais popular do país, como “cama de gato”, e outros ditos populares, como “angu que tem caroço”.
Lançada num dos primeiros álbuns de Gonzaguinha, “Plano de Voo”, já mostrava o poder de crítica e a acidez construtiva dos versos de Gonzaguinha, além da inventividade formal. Foi regravada, com sucesso, por uma de suas grandes admiradoras, a cantora Simone. “No campo do adversário/É bom jogar com muita calma/Procurando pela brecha/Pra poder ganhar…”.
“Tema da Vitória” (instrumental, 1981) – Eduardo Souto
Outra música inesquecível é o “Tema da Vitória”, composta pelo maestro Eduardo Souto em 1980 e gravada pelo grupo Roupa Nova. A música ficou famosa ao aparecer nas transmissões da Rede Globo, principalmente quando Ayrton Senna vencia a Fórmula1. Para relembrar esse período de glórias e inspirar os nossos atletas na Copa do Mundo do Qatar, vamos ouvir o “Tema da Vitória”, de Eduardo Souto, com o grupo Roupa Nova. Clássico atemporal...!
“Aprendendo a Jogar” (MPB, 1981) – Guilherme Arantes
Um dos motivos sempre apontados para alçar Elis Regina ao posto de maior cantora brasileira é, não somente a qualidade da voz, a afinação, a entrega nas interpretações, mas a escolha do repertório. Elis gostava de recolher e pesquisar tanto temas então esquecidos pelo público e compositores relegados ao ostracismo, como Adoniran Barbosa, quanto jogar luz sobre desconhecidos do grande público.
João Bosco, Renato Teixeira, Milton Nascimento e Zé Rodrix são alguns deles, mas, também, Guilherme Arantes, de quem Elis captou todas as nuances da rítmica e sinuosa “Aprendendo a Jogar”. Em consonância com a melodia, o compositor aplica o recurso do drible, para lançar à plateia versos que embaralham os ditados populares do Brasil. A música foi lançada em 1981.
“O Futebol” (samba, 1989) – Chico Buarque
Não é segredo para ninguém a paixão de Chico Buarque pelo futebol. Torcedor assumido do Fluminense, ele se permitiu até rimar futebol com rock’n’roll. Outro momento sagrado para o compositor são as peladas semanais, e, para isso, ele possui campo, time, uniforme, tudo como manda o figurino. Para expressar esse amor em ritmo não foi difícil para Chico, que resolveu fazê-lo em música de 1989, lançada no disco com seu nome.
Além de referências ao universo particular do esporte, Chico não deixar de homenagear seus ídolos, e os cita nominalmente: Didi, Mané, Pelé e Canhoteiro, numa tabela que, certamente, teria um único desfecho: “Para estufar esse filó como eu sonhei/ Só se eu fosse um Rei”, canta.
“Coração Verde e Amarelo” (marcha, 1994) – Aldir Blanc e Tavito
O clima de comoção do Brasil na histórica Copa de 1994 começou com a perda do ídolo Ayrton Senna, que morreu após sofrer um acidente na Fórmula1. Nesse espírito, a equipe canarinho chega aos Estados Unidos tentando quebrar um jejum de 24 anos sem conquistar a competição mais desejada do mundo, desde o fim da geração de Pelé.
Era um desafio e tanto e a equipe do técnico Carlos Alberto Parreira despertava pouca confiança depois de penar nas eliminatórias. Ainda assim, comandada por Bebeto e Romário, a Seleção Brasileira faturou o tetracampeonato ao derrotar a Itália na disputa de pênaltis, embalada pela marcha “Coração Verde e Amarelo”, de Aldir Blanc e Tavito.
“Canhoteiro” (MPB, 2003) – Fagner, Zeca Baleiro, Fausto Nilo e Celso Borges
Um verdadeiro time é o responsável pela canção “Canhoteiro”, lançada por Fagner e Zeca Baleiro no disco da dupla de 2003, e que conta ainda na composição com Celso Borges e Fausto Nilo. A música homenageia um ídolo em comum dos dois cantores, o jogador José da Ribamar de Oliveira, conhecido como “Canhoteiro”, nascido no Maranhão, terra de Zeca Baleiro, que ainda é xará do atleta.
Como se não bastasse, foi revelado no Ceará, terra de Fagner, e fez sucesso defendendo as cores do São Paulo e da Seleção Brasileira. É para Pelé um de seus maiores ídolos, ao lado de Zizinho. A canção homenageia o jeito malandro e irreverente de Canhoteiro, famoso pelos dribles, e o compara, em dado momento a Garrincha. Nada mal para um time: de música e futebol, tanto ritmo.
“Brasis” (rock, 2005) – Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano
Elza Soares já havia afirmado com todas as letras em seu disco anterior que “Deus É Mulher”. Pouco mais de um ano depois, ela colocou na praça “Planeta Fome”, onde clama por um país materno. “Não pode deixar a criança no chão quando ela precisa de colo, o Brasil sempre foi um país acolhedor, que as pessoas gostavam de visitar, hoje não está mais assim”, declarou a cantora. Ao regravar “Brasis”, de Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano, Elza brada por um Brasil mais justo e igualitário e, ao final, conclama toda a torcida a seu unir.
“O Homem dos Três Corações” (samba, 2020) – Altay Veloso e Paulo César Feital
“O samba é um passaporte, a nossa principal carteira de identidade, assim como o futebol”, compara Alcione. Flamenguista e torcedora devota da Seleção Brasileira, ela presta reverência ao Rei do Futebol e Atleta do Século, nascido no interior das Minas Gerais, em “O Homem dos Três Corações”, de Altay Veloso e Paulo César Feital, que combina versos com a agilidade de uma troca de passes.
“Um drible da vaca na dor da ilusão, no revés/ Os deuses ao verem Arantes improvisar/ Assim como fazem artistas de jazz/ E rompem as regras que nem Holiday no piano-bar/ Perguntaram quem é esse homem de três corações a dançar?”. A música foi lançada em seu mais recente álbum, “Tijolo por Tijolo”.