“Eu sou letrista de rock por acaso. Se houvesse pintado um grupo de samba, em vez do Barão Vermelho, eu estaria compondo sambas. De qualquer forma, sou muito latino, muito passional, e minha poesia reflete isso. Posso tentar caminhar no estilo Joy Division, mas quando vou ver o resultado, está muito Cartola”.
A declaração de Cazuza, dada em 1987 para o jornal “O Globo”, reflete a personalidade do cantor, que o permitiu transitar pelos mais variados gêneros da música brasileira e tecer encontros com nomes de todas as vertentes. Cazuza embalou duetos com Gilberto Gil, Simone, Gal Costa, Leo Jaime e Elza Soares. Mas não foi o único. Ao longo da música brasileira, os duetos se configuraram como uma verdadeira tradição.
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“De Babado” (samba, 1936) – Noel Rosa e João Mina
A admiração de João Nogueira por Noel ficou marcada para a posteridade ao musicar “Ao Meu Amigo Edgar”, carta do filho pródigo de Vila Isabel para seu médico, elevando-o a parceiro de um de seus ídolos. A admiração vinha de longe, afinal o pai de João tocara com o autor de “Conversa de Botequim”, da deliciosa “De Babado” (em dueto com Alcione), e de “Feitio de Oração”, todas revisitadas por João, a última com o amigo Luiz Melodia.
Para o patriarca, ele compôs “Espelho” (com Paulo César Pinheiro), título do álbum de 1977, e uma das mais comoventes canções a respeito da relação entre pai e filho, tanto em função da letra quanto da melodia densa, levemente melancólica. Uma beleza.
“Louco (Ela é Seu Mundo)” (samba, 1943) – Wilson Batista e Henrique Almeida
No samba de 1943, Wilson Batista apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do ser humano: o malfadado amor. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma letra inteligente e romântica, que acompanha esses passos desenganados e sem rumo. Lançada por Orlando Silva, a música ganhou várias regravações de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia. Mais tarde, Nelson a cantou em dueto com Alcione.
“Haja o Que Houver” (samba-canção, 1957) – Fernando César
“Quero Ele” foi composta, em 1989, por Cazuza especialmente para a transformista, atriz, cantora e maquiadora Rogéria, que estrelava a versão teatral do espetáculo “Querelle”, de Jean Genet, sobre a vida do marinheiro que seduzia homens e mulheres e frequentava o submundo do crime e das drogas no universo francês.
No filme “Copacabana”, de 2001, estrelado por Marco Nanini e dirigido por Carla Camurati, Rogéria interpreta “Rosa”, clássico de Pixinguinha. Em 2013, Rogéria voltou ao palco no DVD “A Diva Passional”, de Lana Bittencourt, produzido por Rodrigo Faour, e cantou em dueto com a anfitriã a emblemática “Haja o Que Houver”, de Fernando César, uma canção adorada pelos gays segundo o próprio Faour. Em 2016, ao lado de Jane Di Castro, estrelou “Causos e Canções”, onde novamente soltava a sua bela voz.
“Mamãe” (bolero, 1959) – Herivelto Martins e David Nasser
O jornalista David Nasser, e o compositor e intérprete do Trio de Ouro, Herivelto Martins, compuseram juntos um sem número de canções de sucesso de cunho afetivo. A maioria delas, no entanto, enveredava para o lado dos amores desfeitos, das paixões que não deram certo, e por aí vai, especialmente inspiradas na relação de Herivelto Martins com a cantora Dalva de Oliveira.
Mas em 1959 os dois compuseram um bolero em elegia às mães, que pela simplicidade e descrição dos costumes daquela época, rapidamente mostrou seu poder de identificação com uma expressiva parcela do público.
Tudo isso sublinhado pela interpretação magnífica e passional de Ângela Maria. Mais tarde a música seria regravada em dueto com Agnaldo Timóteo, também versado em canções para homenagear as mães. “Ela é a dona de tudo, é a rainha do lar…”.
“A Carta” (balada, 1966) – Raul Sampaio e Benil Santos
Seresteiro dos bons, Raul Sampaio nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e compôs a famosa “Meu Cachoeiro”, regravada por Roberto Carlos, também natural da cidade litorânea que ainda deu ao Brasil o talento do indomável Sérgio Sampaio. De volta a Raul Sampaio, o cantor lançou, em 1962, o samba-canção “Briguei Com Meu Amor”, de Rutinaldo e Airton Amorim. No entanto, sua composição mais conhecida provavelmente é “A Carta”, parceria com Benil Santos – com quem também criou sucessos de Miltinho –, lançada por Erasmo Carlos, e que a regravou em um dueto com Renato Russo.
“Águas de Março” (bossa nova, 1972) – Tom Jobim
Por sua sofisticação melódica, pela inteligência dos versos e agilidade da interpretação, “Águas de Março” é um ícone da canção brasileira de todos os tempos, mas, sobretudo, pelo sentimento inebriante que transmite, pela sensação de algo novo e renovador.
A função das chuvas que trazem “promessa de vida no teu coração” não poderia ser representada de maneira mais feliz por Tom Jobim, autor da letra e da melodia, e Elis Regina, que, ao cantar em dueto com o maestro, contribui para dar novos contornos à canção.
Escrita inicialmente num pedaço de papel de pão, pela ausência de outros recursos, “Águas de Março” anuncia, numa análise mais minuciosa, o triunfo da vida sobre a morte, a importância fertilizante das águas, da chuva, para o recomeço. “São as águas de março fechando o verão…”.
“Esotérico” (MPB, 1976) – Gilberto Gil
Em 1976, Maria Bethânia sugeriu que ela, Gal, Caetano e Gil fizessem um show juntos para comemorar os dez anos de carreira. Assim se criou os Doces Bárbaros, projeto que reuniu o quarteto baiano e culminou em disco. O dueto de Gal e Bethânia em “Esotérico”, música de Gilberto Gil, é um dos pontos altos do espetáculo que foi gravado ao vivo e lançado em LP duplo.
A música é um exemplo bem-acabado da habilidade de Gil de combinar sensibilidade astrológica com uma poesia que não perde o mistério de vista. “Se eu sou algo incompreensível/ Meu Deus é mais”, afirma um verso antológico desta canção.
“Partido Clementina de Jesus” (samba, 1977) – Candeia
Somente o fato de gravar o primeiro LP com mais de 60 anos de idade já foi uma revolução de Clementina de Jesus dentro da música popular brasileira, ainda mais cantando ritmos de origem africana com sua voz típica daquelas paragens. Sua presença de espírito, ao cantar as memórias de seu povo escravo e impor sua figura feminina, negra e de origem humilde, determinaram novos paradigmas para a concepção que se instaurava naquele período. Tanto é verdade que, em 1977, ela mereceu homenagem em samba de Candeia, lançado por Clara Nunes, que a convidou para dueto. Em “Partido Clementina de Jesus”, ou “PCJ”, cantam: “Um litro de gasolina/ Por 100 gramas de feijão”...
“Quatro Cordas que Choram” (choro, 1977) – Waldir Silva, Raphael Vidigal e André Figueiredo
Natural de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, a cantora mineira Lucinha Bosco foi uma das atrações do programa “The Voice Mais”, exibido aos domingos pela Rede Globo. Aos “76 anos e 11 meses”, como ela mesma brincou durante a atração, ela deu voz ao clássico do choro “Pedacinhos do Céu”, de Waldir Azevedo, caiu no bolero “Você Me Vira a Cabeça”, sucesso de Alcione, e arrematou o público com a interpretação da internacional “I´ll Never Love This Way Again”, hit de Diana Warwick, o que levou Toni Garrido, seu técnico e jurado no programa, às lágrimas.
Em 2016, ela participou do álbum “Waldir Silva em Letra & Música”, cantando o choro “Quatro Cordas Que Choram”, lançado originalmente em 1977, em um dueto com Acir Antão, radialista da Itatiaia e, no lançamento, subiu ao palco da casa de shows Pedacinhos do Céu, do músico Ausier Vinicius, no Caiçara.
“Pedaço de Mim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
O seu maior sucesso foi uma canção em italiano, mas Zizi Possi é uma cantora genuinamente brasileira, embora o nome de batismo não esconda a descendência européia. Nascida em São Paulo, Zizi iniciou a carreira há 45 anos, em 1978, com o lançamento do disco “Flor do Mal”, que trazia canções de Sueli Costa, João Bosco, Aldir Blanc, Ivan Lins e Caetano Veloso.
No mesmo ano, Zizi participou do disco de Chico Buarque cantando a dolorida “Pedaço de Mim”, uma das mais bonitas canções sobre a saudade da música brasileira. Tímida e ainda em início de carreira, a cantora mal acreditou quando recebeu o convite.
No ano seguinte, em 1979, a canção foi o carro-chefe e deu nome ao segundo álbum de Zizi. Além de “Pedaço de Mim”, outro destaque do lançamento foi uma versão para “Nunca”, samba-canção de Lupicínio Rodrigues que entrou para a novela da TV Globo.
“Ive Brussel” (samba-rock, 1979) – Jorge Ben Jor
Na capa do disco “Salve Simpatia”, um sorridente Jorge Ben Jor aparece abraçado por uma mulher, mas não se trata de Ive Brussel, a musa da canção homônima que ganhou uma gravação em 1979, num dueto memorável com Caetano Veloso. A homenageada foi uma belga que hospedou o cantor enquanto ele esteve em Bruxelas, durante uma turnê.
Outra história curiosa é contada por Gilberto Gil, que confessou ao amigo Caetano que, após o aparecimento de Benjor, quis desistir da música. Achava que tudo já havia sido feito e nada mais havia a acrescentar entre Benjor e o ídolo João Gilberto. Felizmente, Gil não cumpriu a promessa e legou clássicos à música brasileira.
“Mania de Você” (balada, 1979) – Rita Lee e Roberto de Carvalho
Quando Carmen Miranda brincou com o duplo sentido na carnavalesca “Eu Dei”, de 1937, ela teve que se valer dos versos de Ary Barroso. O mesmo aconteceu com a cantora portuguesa Vera Lúcia, primeira intérprete da lânguida e sensual “Amendoim Torradinho”, obra de Henrique Beltrão lançada por ela em 1955, e que depois ganhou as vozes de Ney Matogrosso, Angela Maria, Alcione, Dóris Monteiro e Ivon Curi, entre outros.
O fato ainda era comum no ano em que Maria Bethânia gravou, “O Meu Amor”, de Chico Buarque, em 1978. Rita Lee avançou nessa questão com a sensualíssima “Mania de Você”, balada composta com o marido Roberto de Carvalho, em 1979. E Milton Nascimento a regravou, em dueto com Rita, no “Acústico MTV”.
“Bolero de Satã” (bolero, 1979) – João Nogueira e Paulo César Pinheiro
Levada à casa de João Nogueira pelo amigo Paulo César Pinheiro, a cantora Elis Regina ganhou de presente a música “Bolero de Satã”, com letra de Pinheiro e melodia de Guinga. Elis decidiu convidar para a faixa, gravada no álbum “Essa Mulher” (1979), Cauby Peixoto, que ela considerava o melhor cantor do Brasil. Como se sabe, Elis tinha um temperamento competitivo e era avessa a dividir os holofotes.
Ela não gostava de duetos. De fato, o que se viu foi outra coisa, mesmo com seu ídolo maior. Ao longo dos 3 min 25s da canção, a presença de Cauby se resume a 32 segundos, sendo que, em boa parte deles, Elis faz vocalises ao fundo, e, nos cinco segundos finais, os dois, enfim, unem suas belas vozes.
“O Casamento dos Pequenos Burgueses” (MPB, 1979) – Chico Buarque
Chico Buarque se vale de uma expressão originária do “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels para dar título a uma divertida música composta para a sua “Ópera do Malandro”. “O Casamento dos Pequenos Burgueses” tira onda com as expectativas matrimoniais concernentes a essa moderna classe média, ao apresentar uma realidade bem diferente da idealizada.
Gravada em dueto pelo autor com Alcione – que se revezam no papel de marido e mulher –, a música parte de uma relação baseada na hipocrisia das aparências, até desandar em agressões pra lá de explícitas, com um verso que se repete e adquire a forma de punição: “Vão viver sob o mesmo teto”. A imagem final é a de uma típica crônica de costumes de Nelson Rodrigues: “A Vida Como Ela É…”.
“Dueto” (MPB, 1980) – Chico Buarque
Nara gostava de novidades e tinha como principal farol de sua conduta artística a liberdade. Quando a crítica torcia o nariz para o sucesso popular de Roberto e Erasmo Carlos, ela foi a primeira a gravar um disco só com canções da dupla.
Seu pioneirismo também alcançou o universo infantil, os álbuns em dueto, com “Os Meus Amigos São Um Barato”, e a emergente canção nordestina, visualizada no disco “Romance Popular”, em que Nara cantava Fagner, Geraldo Azevedo, Fausto Nilo e Moraes Moreira, sendo a primeira a gravar “Bloco do Prazer”, futuro hit de Gal Costa.
O romantismo também foi presença forte na trajetória da cantora, em versões antológicas para músicas de Chico Buarque, como “Com Açúcar, Com Afeto”, “João e Maria” e a irresistível “Dueto”, num encontro musical cheio de beleza.
“Hot Dog” (rock, 1984) – Leiber e Stoller em versão de Leo Jaime
Cazuza e Leo Jaime sempre foram amigos de longa data. Foi Leo, inclusive, que indicou Cazuza para ser vocalista da banda Barão Vermelho, recusando ele mesmo o posto por considerar o estilo “pesado demais”, já que estava mais ligado ao rockabilly do grupo João Penca e Seus Miquinhos Amestrados.
Para compensar o fato de nunca terem composto uma canção juntos, exceção feita à debochada e brincalhona “me chamam pobre, mas meu nome é pobreza”, jamais registrada em disco; os dois celebraram a amizade nesta versão de Leo para “Hot Dock”, com a participação de Wanderley, o cachorro de Cazuza. A música também foi gravada por Angela Ro Ro.
“Mais Um na Multidão” (balada, 2001) – Erasmo Carlos, Marisa Monte e Carlinhos Brown
Erasmo Carlos estreou em grande estilo a parceria com Marisa Monte e Carlinhos Brown, que formariam o trio Tribalistas com Arnaldo Antunes. Em 2001, Erasmo, ao lado de Marisa e Brown, compôs a bela balada “Mais Um na Multidão”, recuperando, em certa medida, o espírito das canções românticas que ele ajudou a consagrar na canção popular brasileira, ao lado de Roberto Carlos. Como se não bastasse, essa canção delicada, sensível, ainda conta com um dueto emocionante entre Erasmo e Marisa, que não poupam a sensualidade na voz e brindam o público com uma interpretação digna de tudo.
“Ficou na Saudade” (choro-tango, 2016) – Waldir Silva, Raphael Vidigal e André Figueiredo
Se o poeta a tem em seus sonhos, de Oswald de Andrade a Aldir Blanc, não é por acaso que a prostituta merece destaque na nossa canção. E para não dar espaço à monocromia, embora timidamente, Zé Ramalho dá luz aos homens que desempenham igual profissão.
Ao longo das décadas essa atividade foi descrita, cantada, e logo, vivenciada, por Noel Rosa, Nelson Gonçalves, Gal Costa, Trio Parada Dura, Odair José, e outros, com diferenças de abordagem e um enorme poder de identificação junto ao público. O choro em forma de tango “Ficou na Saudade”, de Waldir Silva, Raphael Vidigal e André Figueiredo, aborda a relação tempestuosa com uma cortesã, num dueto de Mauro Zockratto com Lígia Jacques.
“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho.
Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.
“Porto-poema” (samba, 2023) – Marcos Frederico e Raphael Vidigal
O inesperado acendeu a canção “Porto-poema”, que nasceu com outro nome, e andamento diferente. O mundo estava sob uma pandemia quando o jornalista e poeta Raphael Vidigal recebeu do músico e habilidoso instrumentista Marcos Frederico uma melodia para colocar letra.
Diante daquele cenário de desolação e medo veio à luz uma canção que exprimia aqueles sentimentos. A gestação durou cerca de dois anos e, nesse processo, todos sofreram transformações. Tanto os compositores quanto a própria cria. “Porto-poema” custou a encontrar o seu novo batismo.
O verso que a intitulou foi um dos últimos a vir à vida. A melodia também se modificou plenamente, agora impulsionada por um esperançar dos novos tempos, de uma nova estrela a brilhar no horizonte. “Hoje a vida me dá bem mais...”, diz o verso de gratidão que encerra o poema em forma de canção.