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Xande de Pilares, Aline Calixto e outros: relembre tributos famosos da música brasileira

Onda de homenagens toma conta do mercado com títulos que exaltam as obras de Caetano Veloso, Clara Nunes e Gal Costa

Xande de Pilares e Aline Calixto colocaram na praça discos em que homenageiam Caetano Veloso e Clara Nunes

A presença de tributos na música popular brasileira não é novidade e decorre, pelo menos, da década de 1950, quando Aracy de Almeida dedicou uma série de discos à memória de Noel Rosa (1910-1937), de quem era uma das melhores amigas, resgatando, para as novas gerações, a obra do “Poeta da Vila”.

Nos últimos anos, essa tendência se acentuou e ganhou destaque, recentemente, com a homenagem do sambista Xande de Pilares ao eterno tropicalista Caetano Veloso, em álbum que chamou atenção da crítica e do público. Aproveitamos a oportunidade para relembrar outros tributos famosos da música brasileira.

“Xande Canta Caetano” (2023)

Ao longo da carreira, Caetano Veloso se habituou a tirar do ostracismo canções tidas como ultrapassadas ou mesmo renegadas sob o rótulo de “bregas”. Logo no início da Tropicália, recuperou a absurda “Coração Materno”, de Vicente Celestino, apresentou-se com Odair José e deu voz a baladas românticas de Peninha, como “Sozinho” e “Sonhos”.

Também se aventurou por “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, sucesso de Fernando Mendes. A abordagem de Caetano era sempre cult, aparando os excessos e carregando essas canções passionais para o lugar que ele mesmo ocupa na música brasileira, ligado à sensibilidade e sofisticação.

O interessante do tributo “Xande Canta Caetano”, homenagem de Xande de Pilares ao bardo tropicalista, é que a história se inverte. Nunca um artista tão popular, ligado ao pagode, dedicou um disco inteiro a um medalhão da MPB, e Xande faz isso à sua maneira.

Não almeja ascender ao lugar de Caetano no panteão da música brasileira, ao contrário, traz o baiano para perto das camadas populares que o sambista conhece tão bem, e onde hoje detém espaço privilegiado, muito mais do que o homenageado.

A mistura funciona porque há, de fato, elementos na música de Caetano que permitem essa travessia, e que adquirem novas camadas de sentido no canto expansivo de Xande. À introspecção, ele oferece a exaltação explícita, como fica claro num dos versos de “Luz do Sol”.

A “glória” de Xande é para cima, clara, solar, e amplia a extensão da palavra para se comunicar com o coro imaginário que é possível sentir em sua gravação, enquanto a de Caetano é interiorizada, para dentro, íntima.

São alguns dos detalhes que tornam esse trabalho diferente de tudo o que já se viu na moderna música brasileira. Faixas como “Diamante Verdadeiro” e “O Amor”, célebres nas vozes de Maria Bethânia e Gal Costa, também ganharam versões inusitadas de Xande, ao passo que “Lua de São Jorge” e “Gente”, especificamente, têm reveladas toda a sua vocação para a comunhão num movimento de massa orgânico que se alimenta do coro do povo.

“Clara Viva” (2023)

Aline Calixto é carioca de nascimento, mas mineira de coração, a exemplo de Milton Nascimento que, assim como ela, se entendeu como gente nas Minas Gerais, onde passou a maior parte da vida. Depois de ser comparada à “mineira guerreira” durante anos, e de ter, inclusive, criado um bloco de Carnaval, batizado “Filhas de Clara”, para se esbaldar na avenida com o repertório de Clara Nunes, Aline finalmente dedica um álbum à obra da intérprete.

“Conto de Areia”, “Você Passa Eu Acho Graça”, “Nação”, “Feira de Mangaio”, “Morena de Angola”, dentre outras, se irmanam a faixas menos conhecidas, como “Fuzuê”, “Afoxé pra Logum”, “Tributo aos Orixás” e “Um Ser de Luz”, que Paulo César Pinheiro, então viúvo da cantora, e João Nogueira compuseram para saudar a memória de Clara.

No disco, Aline é acompanhada por músicos conhecidos da cena mineira, como Robson Batata, Marcela Nunes e Thiago Delegado. Aline tem se aproximado de forma cada vez mais explícita do universo das religiões afro, e exaltado esse sincretismo em lançamentos recentes como “Pontinhos de Amor”, álbum de canções infantis inspiradas pelo candomblé e pela umbanda.

Essa ligação sugere uma nova camada de aproximação entre ela e o universo de Clara, que fica explícito na escolha das canções banhadas em sincretismo religioso. “Clara Viva” mantém acesa a chama da sereia de Minas, no canto ao mesmo tempo quente e suave de Aline, que a reverencia sem, no entanto, cair na tentação de emulá-la.

“Adriana Calcanhotto canta Gal Costa: Coisas Sagradas Permanecem” (2023)

Quando o Brasil perdeu repentinamente Gal Costa, aos 77 anos, Marcus Preto, diretor da cantora na última década, convidou Adriana Calcanhotto para homenageá-la. Assim nasceu o espetáculo “Coisas Sagradas Permanecem”, registrado em DVD a ser lançado em breve.

O título é pinçado de “Recanto Escuro”, canção que Caetano escreveu para Gal em 2011, quando produziu o álbum que deu uma nova guinada, mais uma, em sua carreira marcada por transformações, sempre pronta a enfrentar o inédito e desconhecido. “Recanto Escuro” fala sobre Gal e, “ao mesmo tempo, sobre o próprio Caetano, que escreveu a letra”, pontua Adriana.

Os versos da canção, regravados por Cida Moreira em 2017, entrelaçam as duas vivências. “O álcool só me faz chorar/ Convidam-me a mudar o mundo/ É fácil, nem tem que pensar/ Nem ver o fundo/ O chão da prisão militar/ Meu coração um fogareiro/ Foi só fazer pose e cantar/ Presa ao dinheiro”, delineiam.

Depois da prisão de Gil e Caetano pelo regime militar e do posterior exílio em Londres, Gal assumiu a bandeira da Tropicália e se tornou a porta-voz mais rebelde e revolucionária do movimento. No espetáculo, Adriana dá voz a hits da carreira de Gal que se grudaram ao imaginário popular, como “Folhetim”, “Baby”, “Meu Nome É Gal”, “Vapor Barato”, dentre outras.

“Sérgio Sampaio Poeta do Riso e da Dor” e “Meu Amigo Sérgio Sampaio” (2023)

Doido que não se situa. Mais um pobre felino. Homem de trinta. Um compositor popular. Todas essas definições cabem e são insuficientes a Sérgio Sampaio (1947-1994). Dadas por ele mesmo, através de canções autobiográficas, poéticas e melodicamente inspiradas, as palavras tomaram novo corpo e alma nas gravações de Cida Moreira e Edy Star que, cada um a seu modo, dedicaram álbuns ao amigo.

Cida Moreira gravou “Sérgio Sampaio Poeta do Riso e da Dor”, e Edy Star colocou na praça “Meu Amigo Sérgio Sampaio”, quase simultaneamente. Sérgio é autor do eterno hit “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972, e recentemente teve sua balada “Em Nome de Deus” regravada por Maria Bethânia, no disco “Biscoito Fino”, em registro que ainda contou com Maíra Freitas e Chico Chico.

“Não Sou Nenhum Roberto, Mas às Vezes Chego Perto” (2019)

Em 2019, Nando Reis homenageou Roberto Carlos com o disco “Não Sou Nenhum Roberto, Mas às Vezes Chego Perto”, pegando emprestado um verso de sua própria lavra, em música lançada por Cássia Eller, para brincar com a sua antiga aspiração.

A identificação com o mundo das baladas românticas fica clara na escolha do repertório, que apresenta versões para “Amada Amante”, “Abandono”, “Vivendo por Viver”, “Você em Minha Vida” e “De Tanto Amor”, que Roberto chegou a vetar, mas cedeu aos apelos de Nando após o ruivo revelar que era a música de seu casamento.

Já com “Detalhes” o Rei bateu o pé e realmente não liberou. Nando conta que, a partir daí, passou a ser “mais criterioso e protecionista” com a liberação para gravações de suas músicas.

“Nana Caymmi Canta Tito Madi” (2019)

Lançada pelo próprio autor em 1957, “Cansei de Ilusões” abre os trabalhos de “Nana Caymmi Canta Tito Madi”, de 2019. Colocando o devido peso nos versos rancorosos da canção, Nana apresenta uma arrebatadora interpretação, acompanhada pelo piano preciso de Cristóvão Bastos: “Rasguei suas cartas/ Queimei suas recordações/ Mentiras, cansei de ilusões”.

Na sequência, o maior sucesso da carreira de Madi não deixa a temperatura cair. Com “Chove Lá Fora”, o compositor recebeu diretamente das mãos do então presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) uma medalha de ouro entregue pela Revista do Rádio, além do Disco de Ouro oferecido pelo jornal “O Globo”.

Gravada na época por Sylvinha Telles (1934-1966), a música se avoluma no canto de Nana, que mantém na boca as últimas palavras de cada verso. Quando reaparecem, mais brandas, elas parecem ter sido ruminadas, efeito das lembranças que a memória nos causa. Melhor definição para saudade não há: “Onde estás, como estás/ Com quem estás agora?”.

“Mart’nália Canta Vinicius de Moraes” (2019)

Herdeira direta de Martinho da Vila, Mart’nália sempre se sentiu à vontade no universo do samba, conhecido desde cedo no terreiro de casa. Por isso é peculiar o tributo da cantora a Vinicius de Moraes.

Embora haja intersecções entre os gêneros, o Poetinha encontra-se muito mais próximo da bossa nova, e de um samba, por assim dizer, mais romântico e sofisticado, menos ligado à alegria e exaltação das rodas de pagode em que Mart’nália é craque.

Mas ela até que se sai bem ao reconfigurar canções do porte de “Onde Anda Você”, “Tarde em Itapoã”, “Canto de Ossanha”, dentre outras, presentes no álbum “Mart’nália Canta Vinicius de Moraes”, lançado em 2019.

“Espírito de Tudo: Canções de Caetano Veloso” (2017)

Confundida com travesti no início da carreira devido à gravidade da voz e proibida pela ditadura militar de aparecer na televisão por conta de sua excentricidade, Maria Alcina considera a expressão ‘espírito de tudo’ perfeita para traduzir sua personalidade artística.

A irreverente mineira de Cataguases voltou a surpreender, em 2017, com uma homenagem para lá de inusitada a Caetano Veloso. No álbum nomeado com uma das frases da música “Gênesis”, a intérprete coloca a gravidade de sua voz a serviço das canções mais experimentais e menos óbvias do baiano.

“Fora da Ordem” e “O Estrangeiro” recebem o merecido destaque. “Espírito de Tudo: Canções de Caetano Veloso” está disponível em todas as plataformas digitais.

“De Primeira Grandeza: As Canções de Belchior” (2017)

A volta de grandes nomes e a consolidação de intérpretes em ascensão marcaram a música nacional com discos emblemáticos lançados em 2017. Além disso, artistas que nos deixaram também tiveram os seus últimos trabalhos lançados, enquanto outros receberam homenagens pelo conjunto da obra.

Cinco anos depois de “Janelas do Brasil”, Amelinha voltou ao disco para homenagear um amigo. O cantor e compositor Belchior, falecido em abril de 2017, conhecia a cantora desde os tempos em que viviam no Ceará, terra natal da dupla. Com um repertório que entremeou sucessos do porte de “Paralelas” a obras menos conhecidas, a intérprete lançou um dos melhores CDs de 2017.

“Waldir Silva em Letra & Música” (2016)

Waldir Silva nasceu em Bom Despacho, no dia 28 de maio de 1931, e morreu no dia 1º de setembro de 2013, aos 82 anos. Compositor e mestre do cavaquinho, ele conheceu o primeiro sucesso na década de 1950, quando o então Presidente da República Juscelino Kubitschek elogiou publicamente o choro “Telegrama Musical”, escrito em forma de código Morse, o que o levou a compor a trilha da primeira versão da novela “Pecado Capital”, da Rede Globo.

Waldir até chegou a ensaiar uma carreira no Rio de Janeiro, onde conheceu e se tornou parceiro de Zé Ramalho, mas optou por se fixar em Belo Horizonte. Waldir Silva também ficou conhecido por participar e compor a música-tema do projeto “Minas ao Luar”, que percorria as cidades do interior com um repertório de choro e seresta.

Depois de gravar discos instrumentais de choro e bolero, Waldir Silva foi homenageado em 2016, com o disco “Waldir Silva em Letra & Música”, quando suas melodias ganharam letra. “Uma Saudade: Ao Meu Xará” é uma homenagem de Waldir Silva a Waldir Azevedo, outro craque do cavaquinho, que ganhou a interpretação da cantora Natália Sandim. Já Acir Antão deu voz a “Quatro Cordas Que Choram”, com a cantora Lucinha Bosco.