Em 3 de novembro de 2021, o país conheceu detalhes de uma audiência de instrução do caso em que o comerciante André Aranha era acusado de estuprar a influenciadora Mariana Ferrer em um evento no beach club Café De La Musique, em Florianópolis, em Santa Catarina.
Divulgadas pelo The Intercept Brasil, as imagens mostram o ex-advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, dirigindo-se a Ferrer com frases, como: ''eu não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus’’ e “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lágrima de crocodilo.” Em prantos, Ferrer implora por respeito. “Pelo amor de Deus, gente! Que é isso?”.
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Após repercussão das imagens, a pedido do conselheiro Henrique D´Ávilla, que classificou a audiência como uma “sessão de tortura psicológica”, o Conselho Nacional de Justiça instaurou um procedimento disciplinar para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos.
No último dia 13 de novembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu punir o magistrado com uma advertência. Salise Sanchotene, relatora do processo administrativo, votou pela advertência por omissão, pois, segundo ela, o magistrado foi negligente e não impediu os “questionamentos descabidos que violaram a dignidade da vítima”.
O advogado de Ferrer no caso e assistente de acusação do Ministério Público Júlio César Ferreira da Fonseca classificou como apropriada a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de punir o juiz Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC).
Advertência
Para Júlio César Ferreira, a pena de advertência foi bem aplicada e mostra a gravidade do que ocorreu. “Me parece que foi dada uma ideia de que ele praticamente não foi punido, parece que ele recebeu uma punição escolar não. Não foi isso. Ele seria removido da vara e não foi, porque ele já havia saído da vara. A outra punição seria censura, mas essa não poderia ser aplicada, porque ele não é reincidente. Então, o conselho agiu corretamente em aplicar a advertência”, disse à Itatiaia.
O criminalista e professor Michel Reis disse que advertência foi muito pertinente. “Houve omissão do juiz durante a audiência. Isso foi tão gritante que, posteriormente, depois já aprovaram uma lei chamada Lei Mariana Ferrer para impedir que juízes e motores se portem dessa maneira — desprezando qualquer tipo de respeito que todos devem ter com a vítima”, disse.
Em novembro de 2021, foi publicada a Lei nº 14.245, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos, e que ficou conhecida como Lei Mariana Ferrer.
Assistente de acusação está confiante na anulação
André Aranha foi absolvido em primeira instância em setembro de 2020, em decisão do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis (SC). Em outubro de 2021, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) decidiu, por unanimidade, manter a absolvição de André. Houve o entendimento de que o réu não teria como saber que Mariana estava vulnerável, portanto, não haveria dolo, a intenção de estuprar.
Contudo, a advertência dada ao juiz pode mudar essa decisão, segundo Júlio César Ferreira. “Entendo que, se você tem um juiz condenado por negligência e omissão, que prova que ele falhou, esse ato processual e o que vem posteriormente, não tem mais validade. Estamos buscando essa nulidade mas em primeiro lugar, a condenação do réu André de Camargo Aranha no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A vítima sofreu toda aquela tortura psicológica, toda aquela violência institucional e moral grave. Ela sofreu graves abalos psicológico que agravou seus traumas. As provas do crime são acachapantes”, disse o advogado.
O criminalista Michel Reis afirma que tudo dependerá do que foi alegado pela acusação nos recursos. “Na teoria, até é possível invalidar audiência por essa omissão com relação à vítima com esse desrespeito, mas esses recursos só podem julgar o que expressamente foi pedido pela acusação, por isso, depende do que foi dito pela acusação nesses recursos para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal.”
Carla Silene, advogada criminalista e professora no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), acredita que a decisão do CNJ pode ser usada como prova para embasar um pedido de anulação do processo pela parcialidade do juiz. “A decisão do CNJ pode ser um instrumento para questionar a parcialidade do juiz e buscar a anulação do processo.”
A advogada diz, ainda, que casos como o de Ferrer demonstram o “despreparo dos atores jurídicos” para lidar com esse tipo de situação. “Tão comum quanto a revitimização, tem sido o prejulgamento dos denunciados, com gritos e destratos nas audiências. Situações que geram ainda mais conflito para os envolvidos”, disse.
Cinco anos depois
Cinco anos se passaram desde o ocorrido, e a jovem mineira, hoje com 26 anos, enfrenta até hoje sequelas deixadas pelo dia 15 de dezembro de 2018: síndrome do pânico, estresse pós-traumático e fobia social.
Ela e a família voltaram para o interior de Minas, em 2019, para fugir dos holofotes e buscar um ambiente seguro para a recuperação. Lá, a jovem continua sob cuidados médicos para melhora de sua saúde mental e física. A reportagem da Itatiaia teve acesso a um laudo médico, assinado em 13 março deste ano, que descreve a condição da jovem — que, segundo a família — não mudou nos últimos meses.
“Conversamos durante 2 horas, aproximadamente, e constatamos raciocínio lógico, paciente lúcida, com história de muito sofrimento psíquico e com traumas ainda remanescentes, dificultando a convivência normal na sociedade, apresentando agorafobia (fobia de local com muitas pessoas), dificuldade para frequentar a vida pública e relacionar-se com outras pessoas”, começa o documento.
O especialista ressalta que a vítima reage “aos menores ruídos externos ao ambiente” e desenvolveu repulsa ao contato físico até mesmo ao simples fato de cumprimentar com um aperto de mãos em homens.
Com isso, conforme o documento, a vítima ainda apresenta “dificuldade para deixar o domicílio, pois sempre fica sobressaltada à espreita de algo que possa vir a acontecer, alterando a frequência respiratória e com postura corporal de medo e pânico.” O laudo constata que, aliado ao diagnóstico de ansiedade, Mariana sofre de trauma psíquico pós-estupro e síndrome do pânico.