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Tempos de fake news e big techs

Com crise da informação, já não sabemos distinguir com clareza entre verdadeiro e falso

“Se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”.

A julgar pela frase, estamos diante de um excerto bem recente, provavelmente de um influenciador/divulgador de fake news, salvo, claro, pela qualidade da escrita, mas saiba o leitor que o texto é de 1882 e está no conto “O segredo do Bonzo”, de Machado de Assis. Nele, o personagem ficcional, Fernão Mendes Pinto, vai à capital do reino de Bungo. Durante um passeio com um amigo, ambos veem um grupo de pessoas ao redor de um homem que “discorria com grande abundância de gestos e vozes”, a fim de convencer os seus ouvintes sobre a origem dos grilos, os “quais procediam do ar e das folhas de coqueiro”. Ao final do discurso, a multidão “levantou um tumulto de aclamações”, gritando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!”

Ao prosseguirem na caminhada, a dupla se deparou com um homem, Languru, falando à multidão ter descoberto o princípio da vida futura. Segundo a teoria, quando a Terra estivesse para ser inteiramente destruída, bastaria tomar certa gota de sangue de vaca. Novamente o povo, crendo, fez enorme alarido com a novidade. Espantados com a casual semelhança dos dois encontros, perguntaram o que estava ocorrendo a um morador da ilha, Titané, que os levou a um “bonzo de muito saber”. O Bonzo então lhes explicou que havia criado uma nova doutrina, fundamentada na facilidade para divulgar farsas, pois, para ele, a única verdade era a da opinião, já que a realidade era apenas uma conveniência:

- Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. (...) Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada.

. Em seguida, elogiou os divulgadores de suas mentiras:

- Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas idéias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Encantados com a conversa, os três visitantes combinaram que cada um criaria “uma certa convicção”, a fim de lhes trazer lucros, consideração e louvor. Um deles passou a comercializar sapatos, fruto de “obra vulgar”, a partir de cascas de canela. Segundo ele, “não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela”. Entretanto, a experiência mais engenhosa foi a do médico, aproveitando-se de uma “singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente”. Foi assim que “ocorreu-lhe uma graciosa invenção”: “substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado”. A invenção teve enorme adesão, fazendo com que os enfermos aderissem aos montes, acreditando verdadeiramente que havia um nariz metafísico no lugar do retirado. E, para comprovar o sucesso, os desnarigados continuavam carregando seus lenços de assoar, “para glória do bonzo e benefício do mundo”.

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Caro leitor, fico a pensar se reconhecemo-nos neste conto. Nestes tempos em que, tal qual na ilha de Bungo, somos incapazes de enxergar a castração debaixo dos nossos olhos. Tempos em que pesa sobre nós, gravemente, a crise da informação, pois já não sabemos distinguir com clareza entre verdadeiro e falso. E a coisa fica mais séria, quando tratamos da vida humana e do risco de desinformação, a ponto de a ciência ser negada, mesmo diante da iminência da morte, como no caso da Covid. Ou diante das mudanças climáticas, em que as catástrofes ambientais batem à nossa porta diariamente, ora com tempestades e inundações, ora com queimadas jamais vistas. Os exemplos estão a nos mostrar o grau de insensatez da vida moderna, em que, pautados por uma ideologia própria, pregamos uma humanidade suicida, que tudo destrói. Tal qual o Bonzo, substituímos facilmente um dado concreto e desagradável por uma opinião infundada, baseada num simples desejo. Agora, com a chegada da inteligência artificial, em breve nossos olhos não serão capazes de distinguir a realidade da montagem. Já é possível reproduzir vozes, rostos e gestos idênticos ao real. Em breve não saberemos qual o real e qual o ornado pela ficção.

Mas há também outro problema. A substituição do Estado pelas big techs, capazes de facilmente nos induzir a comportamentos e, consequentemente, decidir eleições, criar grupos fundamentalistas, destruir gratuitamente reputações e por aí vai. Daí a necessidade de os países protegerem a população e sua soberania, em especial fortalecendo as Instituições, as quais possuem inúmeras falhas e vícios, mas ainda são sujeitas a algum controle. Os Poderes Legislativo e Executivo são escrutinados a cada 4 anos, há alternância dos cargos, surgem sempre novos candidatos, a fiscalização pelo voto é constante. O Poder Judiciário e o Ministério Público são formados, em sua maioria, por membros que ingressaram em seus quadros, por meio de difícil e exaustivo concurso público, sem nenhuma relação de subserviência a quem quer que seja. Além disso, há órgãos de controle externo, integrados por membros que não pertencem às Instituições. Agora, com as big techs a coisa é completamente diferente. Não há a quem reclamar. Imagine a situação: Alguém divulga informações claramente inverídicas a seu respeito, capazes de afetar a sua honra e a de sua família. Sem Instituições fortes, as big techs poderão escolher, optar, por mantê-las ou não.

Daí a necessidade de obrigar as big techs a respeitarem as decisões judiciais e legislações de cada país. E mais, a importância de regulamentação das redes sociais, a fim de garantir a transparência, precisão dos resultados de busca e eventual punição para informações claramente inverídicas. Do contrário, estas empresas serão o bonzo dos dias atuais. E os seus divulgadores de fake news os Patimaus, Langurus e Titanés. Todo esse mal que se avizinha é demasiadamente grave e perigoso para que não demos o sinal de alerta.

Ops. Faleceu Marina Colasanti, aos 87 anos. Dentre seus poemas, um dos que mais gosto é “Eu sei, mas não devia”. Partilho um aperitivo: A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer./ A gente se acostuma para não se ralar na aspereza para preservar a pele./ A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar, se perde por si mesma./ A gente se acostuma, eu sei, mas não devia.

É, realmente nos acostumamos com o absurdo sem nos darmos conta. Veja, caro leitor, que ao acessarmos os sites de internet, somos obrigados a selecionar figuras e letras, criadas por robôs, para provar para os robôs que...não somos robôs. A gente se acostuma a tempos estranhos, não?


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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