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O homem moderno: campeão em tudo

O fracasso faz parte de nossas vidas, ainda que muitos tentem escondê-lo

Sabedor de que o tilintar dos copos normalmente anunciam, para além do Réveillon, alta voltagem alcoólica e que muitos nesta festança bebem com a alegria de um corredor que acaba de concluir uma maratona no sol a pino e abre uma cerveja gelada, resta-me indagar-lhe se estas linhas o encontram bem. Caso haja a confissão de algum exagero, ainda que subliminar, fica a sugestão de leitura de Paulo Mendes Campos, em “Bom dia, ressaca”, um experiente no assunto, que muito além de conselhos morais vai fazer você rir bastante.

Resolvido o percalço inicial, inauguro as nossas conversas de 2025 após consultar um pouco as redes sociais, neste fim de ano, e me deparar com o pleno sucesso pessoal e profissional dos conhecidos e desconhecidos, a esbanjarem suas bebidas e fotografias nas festas de fim de ano. Sempre lindos, com os copos cheios, em lugares estonteantes e com a promessa de um 2025 com ainda mais sucesso. E aí me lembrei de Fernando Pessoa, em “Poema em linha reta”, escrito entre os anos de 1914 e 1935: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo./E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,/ Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,/ Indesculpavelmente sujo...”

Fico a imaginar como Fernando Pessoa viveria numa sociedade como a de hoje, em que necessitamos tanto da aprovação do outro, fazendo da demonstração do sucesso uma constante. Como ele era alguém de personalidade, provavelmente continuaria partilhando conosco seu mundo real, com as nossas fragilidades, fracassos e, inclusive, pecados. No poema, ele os admite dizendo “que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,/ que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,/ que tenho sofrido enxovalhos e calado,/ que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda.”

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Recentemente, testemunhei alguns alunos recebendo título de destaque acadêmico em uma tradicional escola da capital. No pátio, os “merecedores”, perfilados, ouviram o Hino Nacional, seguido de algumas palavras de incentivo. Em seguida, foram convidados pelos diretores do colégio para receberem, ao lado dos pais, a homenagem da escola. Enquanto isso, os demais alunos, a tudo assistiam, à distância, inclusive separados por barreiras físicas. Para eles, naquele momento, estavam fechadas as portas invisíveis daquele espaço. Aquilo não era “para eles”. Ao mesmo tempo, os “de sucesso”, eram exaltados pela escola e por seus familiares. Muitos hão de dizer que isso tudo é um incentivo para “que todos cheguem lá”. Entretanto, será esse o objetivo do ensino? Será que o resultado das “notas” diz tanto assim? Será que é conveniente cultivar nas crianças tamanha simbologia do sucesso? Da competição? Aliás, pensando bem, será isso “sucesso”?

Em 1894, o jornal “A Semana” fez uma votação dos melhores contos em 6 classificações. Machado de Assis, que escrevia no semanário e estava no auge de sua carreira literária, não ocupou sequer os primeiros lugares em nenhuma das categorias. Nem preciso dizer o resultado disso tudo 130 anos depois. Bom, apenas me pus a pensar, em silêncio, nisso e em tantas outras coisas, já que não iria atrapalhar a alegria dos pais, orgulhosos dos filhos tão especiais. E também da escola que parecia entender todo aquele espetáculo como uma grande sacada.

A verdade é que o culto ao sucesso transforma-nos quase em um bem de consumo, em que nos exibimos o tempo todo, ostentando os nossos êxitos, numa espécie de mercadoria que depende da aceitação social. E assim, se analisarmos bem, pouco são os com coragem para revelar os seus fracassos, “toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida”. Acho que Fernando Pessoa bradaria com ainda mais vigor: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”

Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo alemão, tratou desse problema ao falar do mal-estar da pós-modernidade, teoria segundo a qual nada pode estar “fora do lugar”, tudo tem que ser, a todo tempo, perfeito. E assim, os “fracassados”, tornam-se invisíveis. E, nas redes sociais, os que aparecem o fazem em razão do pseudo “sucesso” e, assim, ganham mais likes, diante de um público ávido por ostentação, novidades e tolices.

Vejam os “casos de sucesso” no mundo jurídico. Supervalorizamos os jovens que passam cedo nos melhores concursos, são os primeiros colocados, concluem suas teses antes do verdejar dos trinta, enfim, os que atingem o “sucesso” de forma mais rápida. O que importa é a performance e o desempenho imediato. Todavia, nada disso significa que serão bons profissionais e que honrarão as importantes funções que venham a ocupar. Muitas vezes, o melhor Promotor de Justiça, o melhor Juiz, é o que demorou anos e anos para passar no concurso. Tudo depende do compromisso social e não do sucesso imediato. Agora, o pior destes símbolos é que eles geram, naqueles que não logram o suposto êxito, uma enorme cobrança, que às vezes produz desencanto diante da vida, pois se veem como seres invisíveis, fracassados, já que a sociedade não reserva espaço para o sofrimento, para a perda. A ilusão da felicidade ocupa a ordem do dia. É disso que Fernando Pessoa alertava-nos ao dizer: “Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas./ Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. É preciso esclarecer, sobretudo para os jovens, que esse mundo de constante sucesso não é real. E nem saudável, não obstante a sociedade do consumo faça de tudo para dizer o contrário.

Provavelmente, agora o leitor franzirá a pestana, se já não o fez. Outro exemplo. Este aprendiz fez de tudo para assistir à série “Senna”, disponível no streaming Netflix. Confesso, fui animado, afinal gostaria muito de saber sobre a vida de um dos maiores heróis brasileiros, o qual sempre me encantou desde a minha meninice. Quando li os títulos dos episódios, percebi que eram de dar inveja a qualquer livro de autoajuda: “Vocação, Determinação, Ambição, Paixão, Herói, Tempo”. Tudo muito perfeitinho, acendi o alerta. Como a esperança venceu a experiência, insisti. Resultado: Não consegui sobreviver ao segundo episódio... Canonizaram o Ayton Senna, ao construir um “ídolo de mercado”, um ser sem defeitos, sem contradições, esvaziado de sua própria história. Não há conflitos, não há erros, “fracassos”. Há só o mito, inclusive fora das pistas. Tudo é triunfo. E eu, que estava interessado justamente nas suas falibilidades, ou seja, no seu aspecto humano, demasiadamente humano, fiquei a ver navios... e eis aí um belo resumo deste mundo líquido.

Bom, essas decepções fazem parte e acontecem com todos. Aliás, ou melhor, inclusive, o fracasso faz parte de nossas vidas, ainda que muitos tentem escondê-los. Não é preciso acertar sempre. Nem ser o melhor, o mais isso e aquilo... E esta conclusão não é deste aprendiz, mas de um tal Álvaro de Campos, mais conhecido como heterônimo de Fernando Pessoa. E também de uma tal Elizabeth Bishop que, ao conhecer o Brasil, se encantou por Petrópolis e nos ensinou a arte de perder:

A arte de perder não é nenhum mistério/ tantas coisas contém em si o acidente/ de perdê-las, que perder não é nada sério./ Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,/ a chave perdida, a hora gasta bestamente./ A arte de perder não é nenhum mistério./ Depois perca mais rápido, com mais critério:/ lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita./ Nada disso é sério./ Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes./ A arte de perder não é nenhum mistério./ Perdi duas cidades lindas. Um império que era meu, dois rios, e mais um continente./ Tenho saudade deles. Mas não é nada sério./ Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo )não muda nada./ Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser um mistério/ por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Que ela nos inspire a admitir nossas perdas, erros e fracassos, os quais não devem e não podem nos conduzir à tristeza ou ao desencanto que o mundo insiste em nos impor. A incompletude é da nossa essência. Não nos iludamos com o pseudo sucesso alheio, que estará sempre a nos rodear...

Ops. Espero não ter perdido o leitor com essa história do Senna. Peço mais uma chance (e paciência), sei que já superamos outros obstáculos, vou tentar aclarar melhor essas ideias na próxima coluna. Pedirei auxílio ao Bruxo do Cosme Velho. Ele sempre tem algo a me dizer. A ver...


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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