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Presépio

Dezembro chegou trazendo-nos o entusiasmo e a esperança do ano que se aproxima

Dezembro chegou trazendo-nos o entusiasmo e a esperança do ano que se aproxima, o incentivo desenfreado às compras, o quase esquecido verdadeiro significado do Natal, que são os ensinamentos de um Cristo que pregou a democracia, o respeito à diversidade, a inclusão social, a tolerância e a paz. O mês trouxe também uma infinidade de frases repetidas às escancaras. Antônio Maria, cronista e compositor brasileiro, bem as resumiu, no longínquo ano de 1959. Entretanto, elas sobreviveram ano após ano. Compartilho algumas com o leitor.

“O ano passou num abrir e fechar de olhos”; “Você reparou quanta gente conhecida morreu este ano?”; “E todas quando a gente menos esperava”; “Eu espero que o ano que vem seja um pouquinho melhor”; “Eu tenho horror a datas… se não fossem as crianças…”;“Bom, o regime eu só vou começar depois do ano”; “O que é que você mais desejaria que o Ano Novo lhe trouxesse?”; “Minha filha, eu e as crianças estando com saúde, não preciso de mais nada”; “Eu quero ver se, de janeiro em diante, paro de fumar e de beber”; “Eu já avisei a todo mundo, que não quero nada, porque não tenho para dar a ninguém”.

Curiosamente, essas frases me fizeram lembrar de um hábito da minha infância que, ao contrário delas, tem perdido espaço: os presépios. Essa importante representação do cristianismo tornou-se popular quando São Francisco de Assis, em 1223, celebrou a tradicional missa de Natal dentro de uma gruta, na floresta de Gréccio, em meio à população, e não no interior da Catedral. A intenção era justamente reviver a simplicidade do nascimento do Menino Jesus, razão pela qual preparou a manjedoura cheia de feno, colocando ao lado um jumento e um boi. Sobre o feno, havia a imagem do Menino Jesus, ladeado pela Virgem Maria e São José. A reconstituição tinha como função demonstrar a simplicidade da vida de Cristo e difundir seus valores. Em 2019, o Papa Francisco visitou o Santuário Franciscano de Greccio, quando rememorou este belo capítulo da história universal:

“Com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização. O seu ensinamento penetrou no coração dos cristãos, permanecendo até aos nossos dias como uma forma genuína de repropor, com simplicidade, a beleza da nossa fé.(...)

“De modo particular, desde a sua origem franciscana, o Presépio é um convite a «sentir», a «tocar» a pobreza que escolheu, para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-lo e servi-lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados (cf. Mt 25, 31-46).”

Dito isso, falemos um pouco de um escrito de Guimarães Rosa, “Presepe”, de 1960, que se encontra em Tutaméia, terceiras estórias. O conto trata de um idoso que, “tão gordo fora”, era chamado de Tio Bola, deixado para trás na noite de Natal, em que os familiares, numa presepada, foram à vila, para a missa-do-galo, deixando-o na fazenda com dois encarregados, Nhota e Anjão. Tio Bola “aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais”, ou seja, sequer era interessante para um parasita, ou seja, não passava de uma bola, agora murcha.Aproveitando-se do momento, Tio Bola, livre de toda aquela gente que lhe impedia de realizar seus desejos, “apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam”, decide montar seu próprio presépio para reviver o momento do nascimento do Menino Jesus, numa recriação bíblica. Ele pede a Anjão que leve um boi ao curral, onde já se encontrava um burro. Assim, estava pronto o cenário: “O burro e o boi – à manjedoura – como quando os bichos falavam e os homens se calavam”.Então, pelas dez horas, Tio Bola “devagar descera, com Deus, a escada” que levava ao curral. Era um momento especial na vida daquele idoso que “empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor – caruca – que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.”

Neste cenário de alusão ao renascimento do Menino Jesus, “não como o Menino, em pura nueza (…) mas, pecador, numa solidão sem sala”, ele se deitou no cocho, ou seja, uma manjedoura improvisada e acabou dormindo. Ao acordar com o cantar do galo, o idoso subiu a escada de volta à casa, repetindo:

– Amém, Jesus!

O conto nos traz uma importante reflexão acerca da separação social. De um lado, há um grupo familiar que vai à vila para festejar a celebração Natalina, numa “animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas!”. Eles são identificados pelo narrador pelo pronome indefinido “todos”. De outro, estão os “ninguém”, o grupo dos excluídos, aqui formados por Tio Bola, Nhota e Anjão, deixados sozinhos na fazenda por não terem valor algum. Anjão é descrito como “estafermado”, ou seja, um inútil social, apesar de ser o grande responsável pelos cuidados da fazenda. Nhota é a responsável pelos cuidados com o idoso, tratando-o com respeito e carinho, apesar de seu hábito de censurar: “- ‘Mecê não mije na cama!’. No presépio criado pelo idoso, provavelmente eles representam, respectivamente, São José e a Virgem Maria. Já o octogenário Tio Bola, ao dormir de “pés postos”, numa alusão ao final da vida, faz, por mais paradoxal que possa parecer, a função do recém-nascido. Entretanto, ao contrário do Menino Jesus, ele aparece vestido, simbolizando o pecado entre os homens. Ao despertar no tremeclarear, o idoso se dá conta de que, finalmente, havia compreendido o sentido do Natal e o significado dos ritos que se associam à possibilidade de renascimento, pouco importando a idade, a condição social ou até as formas tradicionais de família. E mais, que o Natal é sempre tempo de nos redescobrir, pois há sempre um futuro pela frente. Segundo a Prof. Regina da Costa da Silveira:

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“Tio Bola está a nos dizer que a vida é sempre um espetáculo novo, ainda que encene memórias de um tempo muito antigo; um palco constante em que entramos quase sempre de improviso; um quadro sempre por desenhar...”

Nesta era da pós-verdade, em que superavalorizamos as formas em detrimento da essência, em que os ritos se sobrepõem aos valores, em que o direito definitivamente não consegue dar conta de implementar as garantias de uma Constituição Cidadã, que estabelece, já no seu primeiro artigo, a dignidade da pessoa humana como valor fundamental, é sempre bom nos lembrar da simbologia do presépio, como um despertar para a consciência crítica. Ele está a nos dizer de um Jesus Cristo pacificador, de um projeto civilizatório pautado no afeto nas relações pessoais e na ajuda mútua, nas relações sociais. Talvez por isso seja tão difícil fazer-se cristão e tão fácil dizer-se cristão. Daí a necessidade de constante vigilância com as tentativas de instrumentalização da religião, quando às vezes ao se pregar intolerância, uso de armas, ataques à democracia e afins, em nome de Deus, faz-se justamente o contrário do que Cristo nos ensinou.

Por isso, caro leitor, desejo a mim, a você e a todos nós que possamos reviver verdadeiramente a simbologia do presépio. E, claro – e porque não? – que possamos também renascer a criança que habita em nós, assim como fez Tio Bola, aos oitenta anos, ao representar o recém-nascido.

É o meu esperançar para todos nós.

Ops. O quadro que abre a coluna se chama “Adoração do Cordeiro Místico”, pintada pelos irmãos Van Eyck, em 1432. Nele estão contidos o Velho e o Novo Testamento, tendo Jesus Cristo ao centro metaforicamente representado como o cordeiro. A obra foi subtraída por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, permanecendo escondida em uma mina de sal na Áustria. É, a arte e a cultura sempre incomodaram. E continuam incomodando, basta olhar à nossa volta...

E por falar em arte, aproveito para sugerir ao leitor que assista ao filme “Ainda estou aqui”, sobre a vida de Rubens Paiva.


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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