Ouvindo...

As festas

Para além de todo o stress de uma vida atribulada, as festas de fim de ano chegaram!

Vejo por entre as lunetas do leitor um certo cansaço. Tento adivinhar a razão: Para além de todo o stress de uma vida atribulada, as festas de fim de ano chegaram! À reboque do Natal, novembro é o mês das confraternizações. Haja fôlego, saliva e fígado. Sem espaço na agenda, há de se encontrar com todos os que dão o ar da sua graça. Alguns são amáveis, outros amargos. Faz parte?

Num dia, saímos com os amigos “da velha guarda”, quando falamos de assuntos inconfessáveis, provavelmente o instante em que nos sentimos mais à vontade. É a hora das reminiscências da infância, dos casos em que só os envolvidos acham graça. Lá pelas tantas, aproveitamos para produzir uma fertilidade espantosa de soluções para o Brasil, conforme o álcool produz efeitos no organismo. Somos às vezes muito criativos. Noutro dia, passamos noite de delícias fartas com alguns parentes selecionados. Noutro, perdemos tempo com os conhecidos chatos, que insistem em nos encontrar para reclamar de tudo e todos. Normalmente, além de pessimistas, opinam sobre a vida alheia e quase sempre nos trazem demandas... Deveria ser proibido resmungar nesta época do ano. Há também espaço para os encontros do trabalho, da academia, da padaria, do grupo disso, daquilo e tudo o mais. Em todas estas patuscadas, salvo para um abstêmio convicto (de minha parte não falta esforço), a boemia das altas rodas etílicas é uma constante.

Nisso nós mineiros temos uma vantagem: a possibilidade de agradáveis surpresas ao conhecer novos petiscos e botequins, já que aqui cada um tem a sua especialidade. Claro, jamais sem abandonar aqueles que já estão em nossos corações. José Carlos Oliveira, capixaba, bem os evocou, ao falar do amigo Lúcio Cardoso, nesta mesma época (08/12), mas em 1960: Ou é a batida de limão, ou são pequenas mesas num compartimento espaçoso e vazio, ou a linguiça frita que vai tão bem com uma cerveja, ou ainda a vista que se descortina de sua varanda. Cada bar deve ser descoberto, como um porão, como o fundo do mar, como todas as coisas.

Leia também

Claro que cabem algumas advertências, como bem faz o mineiro Paulo Mendes Campos, na crônica “Por que bebemos tanto?”, de março de 1961, um exímio especialista que compreendia o bar como “um objeto que se gasta como camisa”, ou seja, de tempos em tempos é preciso mudar, arejar. Ele, como boêmio que foi, sabia que “é preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado. O homem que toma o bar errado pode gerar sérios aborrecimentos ou ser a vítima deles”. Nesta época do ano, em que muitas opções nos são oferecidas, assim como nos outros 11 meses, é preciso lembrar que “o homem entra no bar para transcender-se: eis a miserável verdade”.

Claro que em meio a tantas opções, é preciso um olfato atento. E aqui o nosso cronista mineiro resume exemplarmente o que é um bom bar e sua raridade:

“Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida. Isto é raríssimo de acontecer. Quando o garçom é uma flor de sujeito, o dono do bar costuma ser uma besta; se os fregueses são alcoólicos esclarecidos, o ambiente às vezes é quente e abafado; vai ver um excelente e confortável bar refrigerado, e boa percentagem de uísque é fabricada no Engenho de Dentro. Para dizer toda a verdade, o bar perfeito não existe”.

Todavia, apesar de um bom bar ser sempre muito bem vindo, é preciso estar atento para que a noite do flagrante “delitro” não acabe em flagrante delito. É que muitos ainda insistem em dirigir depois de todos estes encontros com a vã esperança de que, se “pego” na blitz, basta não soprar o bafômetro. Se aqui o leitor apanhou o queixo entre dois dedos, explico.

De acordo com o art. 306, §2º, da Lei 9.503/97, com redação dada pela Lei 12.971/2014, o crime de embriaguez ao volante pode ser constatado mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova. Portanto, dirigir embriagado pode configurar crime, cuja pena vai de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. E, convenhamos, não vale uma patuscada...

Daí que, além das conhecidas alternativas de transporte, uma boa solução pode ser convidar os amigos (só eles) para jantar bem em nossa casa. Preferencialmente seguindo os conselhos de um antigo poeta romano, Catulo XIII, para quem devem os convidados trazerem “o favor dos deuses e ainda o “couvert”, o assado, o vinho, muito sal, uma companheira enxuta e uma reserva de risadas”. Nessa base, os convidados irão jantar bem e receberão em “troca, mera amizade/ e o que me resta de raro e refinado:/ um perfume/ -Vênus e os amores! -/ o aroma - o cheiro da minha dona”.

Apesar de todas essas possibilidades de uma cerveja gelada, passando por um tinto e chegando às quietudes mineiras, seja nos bares ou em nossa casa, tenho a impressão de que, a essa altura do mês, o leitor já se deu conta de que ano que vem, nesta mesma época, irá mais devagar com o andor, o que, convenhamos, é igualmente apressado, afinal, não há como assumir um compromisso tão distante. E talvez já até esteja naquela reiterada indagação, que se renova a cada ano: Por que bebemos tanto?, título da crônica de Mendes Campos, à qual nos falta resposta.

Disso o que posso dizer é que o excesso de encontros pode ser uma das causas. E quanto a este aprendiz, compartilho da alegria de que finalmente aprendi a passar por este mês indo apenas aos encontros que realmente me apetecem. Abandonei completamente a liturgia do mês e adotei finalmente e orgulhosamente o amadurecimento de que falava Helio Pellegrino, em carta endereçada a Otto Lara Resende, por ocasião de seu aniversário. O texto, que traz belas reflexões sobre a passagem do tempo e a maturidade, trata desde a dor do nascimento até a morte como uma fotografia na parede, mas em especial das conquistas fundamentais da maturidade: “atingir a linguagem bíblica, onde estão expressos todos os problemas do mundo, presentes, passados e futuros, poder sofrer com dignidade, maestria e decência, poder comer quando se tem que comer, dormir quando é hora para isso, copular às quartas e sextas-feiras, tal seja o caso, e – ao fim, morrer, mesmo que seja a um dia assim, com um sol assim etc.”

É, caro leitor, o tempo tem suas vantagens. À medida que os anos passam, vamos ficando mais seletivos conforme a fita métrica vai encurtando. E assim escolhemos melhor como gastar o tempo. É o que fiz este novembro.

Ops. O escoar do tempo também tem me ensinado que é possível se embriagar sem ser de álcool: “Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!” – Baudelaire (Les Fleurs du Mal). Xô ressaca...

Ops2. Aproveitei o tema para ouvir novamente a música “Conversa de butiquim” do Noel Rosa. Êta coisa boa!

Ops3. Desejo ao amigo leitor que nestes encontros de fim de ano o espaço para as fotografias e cliques não tirem o lugar do dedo de prosa e da encantadora linguiça de porco com farofa.


Participe dos canais da Itatiaia:

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
Leia mais