Caro leitor,
“Uma flor nasceu na rua!/ Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./ Uma flor ainda desbotada/ ilude a polícia, rompe o asfalto./ Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/ garanto que uma flor nasceu.”
Este é um trecho do poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945. Talvez numa perspectiva otimista, a flor brotaria do asfalto a nos alertar que ela, a natureza, estaria conosco, sempre trazendo esperança de dias melhores. Numa vida em que melancolias e mercadorias espreitam-nos, haveria sempre uma flor, ainda que feia, capaz de furar “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Tratar-se-ia de uma clara visão otimista: ao homem, ainda que diante de sua própria brutalidade, restaria sempre se apoiar na natureza. A flor representa a capacidade de recomeçar, de ressurgir, de “uma esperança mínima”, ainda mais nos tempos do poema, pós a Segunda Guerra Mundial.
Alguns anos depois, o mesmo autor publicou, em Claro Enigma (1951), o poema “A Máquina do Mundo”, tratando da “estranha ordem geométrica de tudo” que se volta para o lucro a qualquer custo. Nesse poema, uma Máquina aparece no meio de uma estrada a tentar o homem, trazendo-lhe uma “ciência sublime e formidável, mas hermética”, capaz da “total explicação da vida” e das “mais soberbas pontes e edifícios”, a prometer-lhe um “reino augusto”. Ao final, o poeta faz a opção pela natureza:
“A treva mais estrita já pousara/ sobre a estrada de Minas, pedregosa,/ e a máquina do mundo, repelida,/ se foi miudamente recompondo,/ enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas”.
Aqui, mais uma vez, é a natureza que prevalece em prol dos homens, quase a nos libertar das máquinas. Não sei se hoje, passados quase 70 anos desses escritos, Drummond continuaria com essa visão otimista, ou - tendo vivenciado todo o mal que fizemos à natureza - acharia, como eu, que ela desistiu de nós. Bom, convenhamos, se for este o caso, ela até demorou. Nós a maltratamos tanto: queima exagerada de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural, carvão, etc.), desmatamento, monocultura, emissão exacerbada de CO2, poluição dos rios, etc...
Como forma de legítima reação, estamos, em Belo Horizonte, há 150 dias sem chuvas, a umidade do ar está em 10%, vivemos clima de deserto. Os recordes de temperatura são batidos semanalmente em todas as partes do mundo, inclusive nos oceanos. As chuvas, quando aparecem, são torrenciais, causando inundações, destruições e mortes às escâncaras. No último verão, tivemos o estado do Rio Grande do Sul praticamente destruído. Portanto, os exemplos estão a demonstrar o grito do meio ambiente tão sufocado por nossas ações destruidoras, sempre em prol do “progresso”, do “mercado”, da “produção”, e de todos estes nomes que apenas revelam nosso egoísmo. E olha que a Constituinte, em 1988, numa inocente tentativa, dispôs sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e “futuras gerações”. De lá para cá, aumentamos as taxas de desmatamento, a prática de crimes ambientais e estamos destruindo a Floresta Amazônica e o Pantanal, fazendo deste artigo da Constituição letra-morta.
Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), cerca de 40 milhões de pessoas podem morrer, até o fim do século, em razão do aquecimento global. O que mais é preciso para vermos o óbvio? Até quando manteremos o atual sistema de produção/ devastação? Nesse conflito, a Natureza pode até nos parecer frágil e indefesa frente aos constantes avanços dos “asfaltos”, revelados pelas tecnologias a “impermeabilizarem” os solos, ou as nossas vidas. Contudo, ao contrário, o meio ambiente tem mostrado o seu poder, capaz de resistir a qualquer tentativa de mutilação; porém, agora não mais como uma flor a surgir dos asfaltos para nos proteger, trazendo beleza e esperança, mas com o seu grito de desespero frente às nossas ações.
Apesar de tudo o que estamos a assistir, incrivelmente ainda há os que negam as catástrofes climáticas, o aquecimento global e o nosso caminhar à aniquilação do planeta.
Leia mais:
Em 1933, René Magritte, artista belga, pintou o quadro “La condition humaine” (A Condição Humana), a fim de nos mostrar que muitas vezes vivemos num mundo de fantasias inconscientes, em que negamos a realidade. Nele, há um cavalete e um quadro colocados defronte a uma janela, a esconder a paisagem real que existe atrás da janela, “no mundo real”, deixando aos homens uma falsa realidade, forjada nas aparências e simulacros. É uma referência ao mito da caverna, da “República de Platão”, em que os homens, presos no fundo de uma caverna, tomam como realidade as sombras que aparecem nas grotas. Este foi um dos poucos quadros sobre o qual Magritte nos deu alguma explicação, já que suas pinturas são marcadas pelo mistério. Em uma conferência realizada em 1938, no Museu Real de Belas Artes, Antuérpia, ele disse:
“Eu coloquei na frente de uma janela vista do interior de uma sala, um quadro representando exatamente a parte da paisagem mascarada por esse quadro. A árvore representada por esse quadro escondia, assim, a árvore situada atrás dele, fora da sala. Ela se encontrava para o espectador, ao mesmo tempo, no interior da sala, no quadro, e também no exterior, na paisagem real, no pensamento. É assim que vemos o mundo. Nós o vemos no exterior de nós mesmos, todavia não temos mais que uma representação dele em nós [...]”.
Trata-se, portanto, de uma representação sobre a nossa ilusão, seja através do sonho, do inconsciente, do desejo e até do irracional. Negar a realidade do aquecimento global e da destruição ambiental em massa é viver em estado de ignorância perante a realidade, vendo da janela apenas o quadro que queremos ver e não a paisagem que se revela.
Ops. O Acordo de Paris definiu como meta a redução das emissões de gases de efeito estufa de 28% a 42% até 2030. Até agora, estamos completamente inertes... Cada geração deixa à humanidade pelo menos um legado. A nossa, infelizmente, será a devastação ambiental. Certamente seremos cobrados pelas futuras gerações.
Ops. O quadro de René Magritte ainda não está em domínio público, razão pela qual não abre esta coluna, por isso deixo de presente o link para o leitor que me aturou até aqui.