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A morte do leiteiro

Poema de Carlos Drummond de Andrade foi publicado em ‘A rosa do povo’ no ano de 1945, que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial

“Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro”. Com este início impactante, Carlos Drummond de Andrade começa o poema “A morte do Leiteiro”, publicado em A rosa do povo, 1945, ano do fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um poema narrativo acerca do medo e da violência a que estão sujeitos os trabalhadores das classes menos favorecidas. Drummond retrata a vida cotidiana de um entregador de leite que, humildemente, todos os dias, começa a sua rotina de trabalho antes do amanhecer, sempre cuidadoso para não incomodar os senhores, que ainda adormecem. Num determinado dia de trabalho, acontece uma tragédia, fruto de sua condição social.

“Meu leiteiro tão sutil,/ de passo maneiro e leve,/ antes desliza que marcha./ É certo que algum rumor/ sempre se faz: passo errado,/ vaso de flor no caminho,/ cão latindo por princípio,/ ou um gato quizilento./ E há sempre um senhor que acorda,/ resmunga e torna a dormir./ Mas este acordou em pânico (ladrões infestam o bairro),/ não quis saber de mais nada./ O revólver da gaveta/ saltou para sua mão./ Ladrão? se pega com tiro./ Os tiros na madrugada/ liquidaram meu leiteiro.”

E assim, a tragédia da morte se apresenta ao leiteiro estatelado, ao relento. Ao autor do homicídio, resta citar o nome de Deus e confessar: “Meu Deus, matei um inocente”. Entretanto, a confissão não é seguida de qualquer arrependimento, afinal, o homicida atingiu a finalidade, proteger a propriedade, numa clara demonstração da superioridade dos bens materiais em detrimento da vida humana:

Quem quiser que chame médico,/ polícia não bota a mão/ neste filho de meu pai./ Está salva a propriedade.

O texto trata da morte de um trabalhador, cujo labor era extremamente importante, apesar de completamente desconhecido dos que dele se beneficiavam. Aliás, os beneficiários de seu trabalho o desprezavam a tal ponto que pouco importava “se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom”, bastava que fosse o “meu leiteiro”, por isso as frases iniciais do poema são marcadas pela impessoalidade. A despersonificação da vítima é tão intensa que o autor do crime tenta diminuir sua responsabilidade, alegando que o “revólver saltou para sua mão”, a nos dar a ideia de um pequeno acidente, em que “está salva a propriedade, a noite geral prossegue e a manhã custa a chegar”.

A chegada do trabalhador às casas para entregar o leite sequer era anunciada pela sua voz, mas pela “sua lata, suas garrafas e seus sapatos de borracha, os quais iam dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite”.

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Embora escrito há quase oitenta anos, o texto retrata valores muito presentes na nossa vida cotidiana, sobretudo a supervalorização da propriedade em detrimento da vida humana. Justamente a fim de mudar esta triste realidade, a Constituição Federal de 1988 colocou o ser humano como centro do ordenamento jurídico, estabelecendo, no artigo 1º, como fundamentos da República e do Estado democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. No mesmo sentido, o artigo 170 que, ao tratar da ordem econômica, estabelece a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Contudo, ainda temos um longo caminhar a fim de efetivarmos este princípio constitucional, basta ver que o Brasil é, dentre os países do G20, o 2º com maior percentual de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza (3,5% da população), superado apenas pela Índia. Segundo dados do IBGE, 67,8 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza e 12,7 milhões em extrema pobreza. Portanto, evidencia-se a incoerência entre o texto constitucional e a realidade social.

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No âmbito do Direito Penal, cuja lei é da década de 40, a preponderância dos valores materiais sobre a vida humana também se revela, fazendo com que muitas vezes a punição estatal seja mais rigorosa em relação aos delitos patrimoniais do que à integridade física e à vida da vítima. Para não cansar o leitor, trago um simples exemplo: o crime de lesão corporal possui pena mínima de três meses e máxima de um ano de reclusão, já no delito de furto a pena varia de um a quatro anos, ou seja, a pena mínima para a infração contra o patrimônio é idêntica à máxima da norma que protege a integridade física e a saúde do ser humano.

Enfim, são distorções como esta que nos fazem refletir sobre a atualidade do texto de Drummond. E para os leitores que apreciam o cinema, é sempre bom relembrar do filme “O grande ditador”, produzido em 1940, em que Charles Chaplin, em meio à Segunda Guerra Mundial, surpreendeu o mundo, trazendo a dignidade da pessoa humana para o centro do debate político. Ao final, interpretando um barbeiro judeu que se passava por um ditador, fez um discurso emocionante. Eis um curto trecho:

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.”

Ops. Caro leitor, seria possível compreender que o assassinato não era apenas do leiteiro, mas das possibilidades de ascensão social, num destino quase coletivo? Voltarei a este tema, mas para a conclusão, basta ter olhos para ver...

Ops.2. Em 1848, Gustave Caillebotte pintou o quadro que abre esta coluna, “Raboteurs de parquet”, uma das primeiras representações do trabalhador urbano. No quadro, visualizamos trabalhadores num apartamento burguês, provavelmente situado num dos quarteirões de Paris destinados à reconstrução da cidade por George-Eugène Haussmann. O artista testemunha os trabalhadores, personagens invisíveis, curvados sobre si mesmos, com a pele repleta de suor, em que o olhar do espectador não se cruza com o dos trabalhadores, dos quais vemos apenas o dorso. O artista também ressalta a nobreza e zelo com que esses trabalhadores exercem as suas funções. O quadro foi apresentado e rejeitado pelo júri no Salão de 1887, provavelmente em razão de seu realismo cruel. Como o leiteiro de Drummond os trabalhadores só valem pela funcionalidade, nada mais.


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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